quinta-feira, 14 de maio de 2009

A QUESTÃO SOCIAL DOS PÁRIAS NA ÍNDIA

A Poesia Dalit
Quem assiste à novela global “Caminho das Índias”, de Glória Perez, que faz uma abordagem melodramática da cultura indiana, não faz idéia de como funciona o sistema de castas neste país em desenvolvimento. O sistema de castas (Varna) indiano é dividido de acordo com a estrutura do corpo de Brahma, deus hindu. As quatro principais castas são: A boca (Brahmin) que é representada pelos sacerdotes, filósofos e professores; os braços (Kshatriya) são os militares e os governantes; o estômago (Vaishya) são os comerciantes e os agricultores; os pés (Shudra) são os artesãos, os operários e os camponeses. A representação das quatro principais castas do hinduísmo em torno do deus Ganesha exclui a “poeira sob os pés”. Não pertence às castas, mas tem um nome: são os Dalit ou párias, os chamados intocáveis (a quem Mahatma Gandhi deu o nome de Harijan, “filhos de Deus”). São constituídos por aqueles (e seus descendentes) que violaram os códigos das castas a que inicialmente pertenciam. São considerados impuros e, por isso, ninguém ousa tocar-lhes. Fazem trabalhos considerados desprezíveis: recolha de lixo, coveiros, cata de gravetos para a queima de mortos, etc.
Poucas pessoas no mundo têm experimentado um nível de abuso e pobreza como os 300 milhões de Dalits ou “intocáveis” da Índia. Por 3.000 anos eles têm vivido num ciclo de discriminação e desespero sem esperança de escape. Para os Dalits, dor e sofrimento são parte da vida. Eles estão presos a um sistema de castas que lhes nega a adequada educação, água potável, emprego decente e direito à terra ou à casa própria.A cada duas horas, Dalits são assaltados e duas casas de Dalits são queimadas.Discriminados e oprimidos, Dalits são frequentemente vítimas de violentos crimes. A cada dia, dois deles são assassinados, sem que se dê a devida importância.Embora leis tenham sido aprovadas, a discriminação continua e pouco é feito para processar os acusados. Em anos recentes, porém, tem havido um crescente desejo por liberdade entre os Dalits e castas baixas hindus. Líderes como Ram Raj tem vindo a frente exigindo justiça e liberdade da escravidão das castas e da perseguição.Uma detalhada “Carta dos Direitos Humanos dos Dalits” foi redigida com apelos para a Comunidade Internacional e para a ONU, na esperança de que esses fatos fossem conhecidos pelo mundo todo. Contudo pouco tem mudado e a realidade nos mostra que Dalits que conseguem chegar a uma escola, são forçadas a sentarem de costas nas salas de aula ou até ficarem fora da sala. A cada hora, duas casas de Dalits são queimadas e a cada hora, dois Dalits são assaltados. A maioria das castas altas evitam ter Dalits preparando sua comida, por medo de se tornarem imundos. Em muitas partes da Índia, Dalits não são permitidos entrar nos templos e outros lugares religiosos, 6% são analfabetos. A taxa de mortalidade infantil é perto de 10%. É negado a 70% o direito de adorarem em templos locais. 57% das crianças Dalits abaixo da idade de quatro anos estão muito abaixo do peso. 300 milhões de Dalits vivem em total pobreza na Índia. 60 milhões de Dalits são explorados através do trabalho forçado. A maioria dos Dalits são proibidos de beber da mesma água que os de castas mais altas. Enfim, 300 milhões de Dalits estão escravizados e sem esperança debaixo do julgo do hinduísmo.
Na literatura, derrotar a ordem hindu pelo verbo tem sido um bravo movimento de democratização e de “desburguesamento”, confirmando o propósito da entrada da subversão na literatura indiana com a irrupção dos autores dalits: "Nasci quando o sol enfraqueceu / E lentamente se apagou / No abraço da noite./ Nasci numa viela/ Num trapo velho/ Cresci como alguém com um parafuso a menos/ Comi fezes e cresci./ Me dá cinco centavos, me dá cinco centavos/ E pegue cinco palavrões em troca/ Estou a caminho do santuário", escreveu o grande poeta Namdeo Dhasal, resumindo em algumas palavras o isolamento e a crueldade sofridas por sua comunidade. Os "intocáveis" estão na base da hierarquia social das castas que reinam na Índia desde a antigüidade. A poesia dalit nasceu desse sofrimento e das lutas obstinadas para conscientizar as populações, lideradas por personalidades como Mahatma Jyotiba Phule ou Bhim Rao Ambedkar . Ela emergiu nos anos 1960, no estado ocidental indiano de Mahrashtra, pátria de Ambedkar. Fala da humilhação no cotidiano, que toca a essência da vida. Em um poema sobre a água, Dhasal acusa: “Nós ensinamos mesmo à água a prejulgar a casta”. “Mesmo o sol deverá mudar”, escreveu Arjun Dangle, um outro poeta do Mahrashtra. Para eles, escrever não é apenas uma prática estética. Inspirados na rebelião dos poetas negros estadinidenses de Harlem Renassaince, fundaram, em 1973, o movimento Panteras Dalits. Aliam a prática poética a um ativismo político radical. Fundador desse movimento, Dhasal conhece a notoriedade com sua primeira coletânea de poemas intitulada Golpitha. Seus poemas chocaram o establishment literário pela crueza de linguagem, pelas evocações ousadas, onde se misturam a sexualidade, o desprezível e a revolta. Naipaul, que reencontra esse poeta rebelde nos anos 80, pinta com admiração um retrato do personagem em sua narrativa de viagem Inde, um million de revoltes: “A grande originalidade de Namdeo [Dhasal] está em ter escrito num estilo natural, utilizando as palavras e as expressões que serviam unicamente aos dalits (...). Seu primeiro livro de poemas foi escrito, especificamente, no idioma dos bairros de bordel em Mumbai. Foi isso que criou essa sensação”. Hoje, pode-se falar de um corpus realmente nacional da literatura dalit, com a entrada em cena dos escritores de língua tâmile, goujerati ou punjabi. Segundo Bama, a grande voz da literatura tâmile, no romance autobiográfico Sangati (A assembléia), “a literatura dalit é a única verdadeira literatura de libertação na Índia”.

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